O Arquivo Vivo, fazendo jus ao dia de hoje, 09 de julho, versará acerca do movimento político que ficou conhecido como "A Revolução Constitucionalista de 1932", uma rebelião ocorrida em São Paulo, no dia 09 de julho de 1932, contra o governo de Getúlio Vargas, rebelião esta que, embora derrotada militarmente, atingiu o objetivo pretendido, pois em 1934 ocorreram eleições para a Assembléia Constituinte e, em 1934, promulgou-se a nova Constituição; ademais, pode-se acrescentar ainda o consequente declínio político dos tenentes.As imagens publicadas, a seguir, foram todas extraídas da revista "A Cigarra" (disponível digitalmente no site do Arquivo Público do Estado de São Paulo), numa de suas edições de julho do mesmo ano da Revolução. E para completar o nosso "Arquivo Vivo", seguem três textos que tratam e explicam a questão. Vamos lá...
Capa de uma das edições de julho de 1932 da revista "A Cigarra". A ilustração do bandeirante representa ideologicamente o Estado de São Paulo na sua luta contra o regime politico de Getúlio Vargas, que tinha o apoio político da quase totalidade dos estados brasileiros.
Crônica publicada na revista "A Cigarra" no dia de julho de 1932, uma semana após estourar a Revolução: "São Paulo despertou de um pesadelo de vinte meses, em que o mergulhou a noite da Revolução..."
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A Revolução Constituconalista de 1932"A aliança de classes formada no Governo Provisório não conseguiu conter a insatisfação social e logo começou a desmoronar.A criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (dezembro de 1930), com o propósito de atrelar o operariado ao Estado, não modificou as relações entre patrões e empregados. Como na República oligárquica, as manifestações operárias continuaram sendo uma “questão de polícia” o que colocava o proletariado em campo oposto ao do governo.Outro setor que começou a se distanciar do Governo Provisório foi o da burguesia industrial, cuja maior parcela estava concentradaem São Paulo. A razão do descontentamento era a ausência de medidas protecionistas e de incentivo à atividade industrial por parte do governo, que esperava obter crescimento e diversificação da produção exclusivamente como resultado da aplicação da política de depreciação cambial. Este expediente, utilizado com freqüência na República oligárquica, consistia numa desvalorização da moeda nacional — o mil-réis — diante da moeda forte — a libra —, e em seus desdobramentos:• a conversão das libras obtidas com as exportações em mil-réis ainda mais desvalorizados fazia crescer a receita do país;
• o pagamento das importações, em libras, exigia uma quantidade maior de mil-réis, o que significava produtos importados mais caros e conseqüentemente uma inibição das importações e um estímulo à produção industrial brasileira.De fato, essa política resultaria num crescimento industrial significativo, que constituiu a fase de industrialização conhecida como de substituição de importações. Mas naquele momento, de resultados ainda modestos, a burguesia paulistana não vê no Governo Provisório o atendimento de seus interesses mais imediatos e passa a cobrar a constitucionalizacão e realização de eleições.A classe média, embora beneficiária dos novos empregos criados pelo setor industrial e de serviços em expansão, também exige a constitucionalização do país e a reforma do sistema eleitoral, que vinham sendo adiadas por Vargas. Este, ao contrário, ampliava os poderes do Governo Provisório, incluindo o de legislar até a instalação da Assembléia Constituinte.As velhas e novas oligarquias paulistas engrossaram as fileiras da luta constitucionalista. Para elas, a realização de eleições naquele momento seria extremamente favorável, pois sabiam que Vargas não tivera tempo para desmontar os viciados currais eleitorais e enfraquecer o poder político dos chefes locais.Ainda que não estivessem juntas em 1930, as forças do PRP aproximaram-se dos constitucionalistas liberais do PD (Partido Democrático) e formaram a Frente Única Paulista, que buscou o apoio das oligarquias do Rio Grande do Sul (Borges de Medeiros) e de Minas Gerais (Artur Benardes).Se os tenentes, cooptados por Vargas, eram agora interventores nos estados, alguns setores da alta oficialidade do Exército preparavam com as forças constitucionalistas e oligárquicas de São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul a revolta armada. A rebelião paulista explodiu a 9 de julho de 1932, liderada por Bertoldo Khinger.Os revoltosos paulistas, entretanto, tiveram de levar sozinhos a luta, já que Flores da Cunha, interventor gaúcho, e Olegário Maciel, líder mineiro, permaneceram fiéis ao governo federal. A prisão de Borges de Medeiros e Artur Bernardes isolou a revolta paulista, facilitando o cerco de São Paulo pelas tropas federais.A cidade de São Paulo foi bombardeada e o fim das lideranças revoltosas trágico. Milhares de pessoas tombaram defendendo a constitucionalização do país, sem saber que o que estava em jogo eram as ambições políticas dos coronéis-fazendeiros que, através de fraudes eleitorais, governaram antidemocraticamente o país por longos anos durante a República oligárquica."
Fonte:José Dantas: “História do Brasil: das origens aos dias atuais”. Editora Moderna. São paulo, 1989, p. 230-231
A Revolução Constituconalista de 1932"A aliança de classes formada no Governo Provisório não conseguiu conter a insatisfação social e logo começou a desmoronar.A criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (dezembro de 1930), com o propósito de atrelar o operariado ao Estado, não modificou as relações entre patrões e empregados. Como na República oligárquica, as manifestações operárias continuaram sendo uma “questão de polícia” o que colocava o proletariado em campo oposto ao do governo.Outro setor que começou a se distanciar do Governo Provisório foi o da burguesia industrial, cuja maior parcela estava concentrada
• o pagamento das importações, em libras, exigia uma quantidade maior de mil-réis, o que significava produtos importados mais caros e conseqüentemente uma inibição das importações e um estímulo à produção industrial brasileira.De fato, essa política resultaria num crescimento industrial significativo, que constituiu a fase de industrialização conhecida como de substituição de importações. Mas naquele momento, de resultados ainda modestos, a burguesia paulistana não vê no Governo Provisório o atendimento de seus interesses mais imediatos e passa a cobrar a constitucionalizacão e realização de eleições.A classe média, embora beneficiária dos novos empregos criados pelo setor industrial e de serviços em expansão, também exige a constitucionalização do país e a reforma do sistema eleitoral, que vinham sendo adiadas por Vargas. Este, ao contrário, ampliava os poderes do Governo Provisório, incluindo o de legislar até a instalação da Assembléia Constituinte.As velhas e novas oligarquias paulistas engrossaram as fileiras da luta constitucionalista. Para elas, a realização de eleições naquele momento seria extremamente favorável, pois sabiam que Vargas não tivera tempo para desmontar os viciados currais eleitorais e enfraquecer o poder político dos chefes locais.Ainda que não estivessem juntas em 1930, as forças do PRP aproximaram-se dos constitucionalistas liberais do PD (Partido Democrático) e formaram a Frente Única Paulista, que buscou o apoio das oligarquias do Rio Grande do Sul (Borges de Medeiros) e de Minas Gerais (Artur Benardes).Se os tenentes, cooptados por Vargas, eram agora interventores nos estados, alguns setores da alta oficialidade do Exército preparavam com as forças constitucionalistas e oligárquicas de São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul a revolta armada. A rebelião paulista explodiu a 9 de julho de 1932, liderada por Bertoldo Khinger.Os revoltosos paulistas, entretanto, tiveram de levar sozinhos a luta, já que Flores da Cunha, interventor gaúcho, e Olegário Maciel, líder mineiro, permaneceram fiéis ao governo federal. A prisão de Borges de Medeiros e Artur Bernardes isolou a revolta paulista, facilitando o cerco de São Paulo pelas tropas federais.A cidade de São Paulo foi bombardeada e o fim das lideranças revoltosas trágico. Milhares de pessoas tombaram defendendo a constitucionalização do país, sem saber que o que estava em jogo eram as ambições políticas dos coronéis-fazendeiros que, através de fraudes eleitorais, governaram antidemocraticamente o país por longos anos durante a República oligárquica."
Fonte:José Dantas: “História do Brasil: das origens aos dias atuais”. Editora Moderna. São paulo, 1989, p. 230-231
Comício na capital paulista, em julho de 1932
Outro aspecto do comício realizado em São Paulo, no centro da cidade
Outra fotografia do comício realizado na Praça do Patriarca, na capital de São Paulo
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A pátria bandeirante: entre o passado e o presente
"Tratar da identidade constitucionalista é identificar um “ser paulista” que se refere não apenas ao paulista de nascimento, mas todos que congregariam de um “espírito paulista”. A guerra civil ficou na história como uma questão paulista e o isolamento a que o estado foi subjugado durante o conflito exacerbou ainda mais as percepções nesse sentido. Para que o movimento ganhasse expressividade e agregasse o maior número possível de militantes e simpatizantes, tornou-se estratégico o uso de propagandas que divulgavam a auto-imagem do grupo constitucionalista vinculada à exaltação e reafirmação da identidade deste “ser paulista”, entrecruzava-se, assim, as duas identidades. O velho bandeirante construtor da nacionalidade teria agora que defendê-la, empunhando a constituição como arma. Os historiadores, sobretudo da revista do Instituto Histórico Geográfico de São Paulo (IHGSP), como Afonso de Taunay e Alfredo Ellis Jr., atribuíram aos paulistas o papel de construtores da nacionalidade. Aos intelectuais e, sobretudo, à imprensa coube o papel de exaltar a superioridade desse povo diante do novo desafio, a luta pelo retorno da norma constitucional.
Segundo Peter Burke (2000), cada sociedade, assim como os indivíduos, seleciona os acontecimentos e valores a serem retidos na memória e depois determina também a maneira com que devem ser rememorados. Essa observação se aplica à experiência paulista, pois a construção da identidade do movimento de 1932 perpassou pela adaptação dos valores e da história paulista aos princípios constitucionalistas. Nesse sentido, os feitos e as personagens do passado são rememorados e outras vezes também ressignificados no trabalho de construção de uma imagem do Estado de São Paulo personificado como sujeito coletivo, civilizador e promotor do progresso nacional. Busca-se também promover a coesão de diversos grupos sociais e étnicos, resgatando a importância destes nos cenários das mudanças regionais, formando uma aparente homogeneidade firmada na identidade una do “ser paulista”.
Danilo Zioni Ferretti e Maria Helena Capelato (1999) afirmam que, desde o final do século XVIII, a elite paulista esforçava-se por formar a identidade de São Paulo como a vanguarda da nacionalidade. Segundo os autores, a partir de1870, a elite cafeicultora, marcada pela orientação republicana e liberal descentralizadora, empenhou-se em representar o paulista como um povo singular que tinha como principal característica o empreendedorismo, visto o desenvolvimento e a consolidação do café no oeste da província.
Segundo este discurso, os "brasileiros" seriam caracterizados pela submissão e dependência frente ao governo, pela falta de iniciativa, indolência e preguiça. Já os paulistas seriam marcados pelo desenvolvido "espírito empreendedor", pela iniciativa, tenacidade, energia e independência perante o governo. Disso concluía-se que o paulista era uma "exceção" no conjunto do império e o rápido crescimento da província e sua participação no movimento republicano, devido única e exclusivamente ao espírito empreendedor de seus filhos, comprovaria tal fato. (FERRETI e CAPELATO, 1999, p. 5)
Ferreti e Capelato demonstraram que tais grupos paulistas buscavam representar a superioridade do estado no conjunto do Brasil, além de marcarem com clareza a excepcionalidade de São Paulo, aproximando-se do norte americano. O auge das discussões foi dos anos 1920 e início dos anos de 1930, quando a temática passou a ser discutida nos diversos veículos de comunicação. Nesse contexto, o levante de 1932 marcou mais um surto de paulistanismo.
Segundo Maria Helena Capelato (1989), o jornalista paulista Amadeu Amaral referiuse ao “imperialismo benéfico de São Paulo”, que justificava o papel de liderança que esse estado deveria assumir na grandiosa obra de transformação do Brasil em uma potência. A definição do Estado de São Paulo como a “locomotiva que puxa os vagões vazios” é ressaltada em vários estudos econômicos e sobre a dinâmica industrial.
Para continuar sendo a “locomotiva” do Brasil e, naquele momento, defender o país da ditadura varguista, os paulistas tinham consciência de que o estado necessitava de “trilhos” fortes. Durante os primeiros anos da década de 1930, os paulistas tentaram agregar os outros estados à campanha constitucionalista. Contudo, o apoio conseguido nessas regiões não foi oficial, restringindo-se a alguns líderes isolados em Minas, no Rio Grande do Sul e no Mato-Grosso. A falta de apoio, especificamente de Minas Gerais, ressentiu os paulistas, pois, até então, a integração entre os dois estados era estendida do campo econômico ao político. Minas e São Paulo eram os “dois irmãos” da política Café com Leite; foram aliados na Aliança Liberal, que incluiu o Partido Republicano Mineiro e o Partido Democrático. O estado de Minas Gerais era o vizinho com que os paulistas esperaram contar até o último instante em 1932. Contudo, o passado de integração ficou para trás, pois o momento colocava antigos aliados em lados contrários. Paulo Duarte (1947, p. 302) comenta com pesar a separação dos antigos companheiros de luta: “O mineiro, este era da família. Vizinho amável, um pouco agarrado, mas companheiro firme de todas as agruras. Entretanto, hoje nos mostrava as coisas diferentemente”.
A situação de isolamento exacerbou ainda mais o sentimento regionalismo que existiaem São Paulo. A população do estado revestiu-se de uma espécie de “patriotismo regionalista”, que se caracterizava pela divulgação de que o bem do Brasil passa pelo bem de São Paulo. Naquele momento, os paulistas colocaram-se à disposição para guerrilha ofertando esforços, bens, trabalho, família e a própria vida em defesa da Pátria.
Os paulistas viam nos dados econômicos e na compreensão de sua própria história o status que legitimava a sua liderança nacional e justificava o apoio ao movimento constitucionalista solicitado aos outros estados. Para reforçar ainda mais a própria representação, os paulistas foram envolvidos nos discursos nostálgicos de valorização das glórias do passado. A imagem do paulista vinculada ao empreendedorismo e à liberdade aparece na obra de Paulo Duarte relacionada à luta constitucionalista pela democracia, tendo como símbolo os bandeirantes e ex-escravos do Quilombo dos Palmares.
A imagem dos ancestrais bandeirantes é retomada numa visão romântica de heróis paulistas. Considerava-se que São Paulo gozava as honras do estado mais rico do país graças à tenacidade daqueles que o construíram, ou seja, dos desbravadores do território nacional que enfrentaram os perigos das matas e foram recompensados pela descoberta das riquezas.
A febre épica de valorização do bandeirante tinha finalidade comparada a de um mito de origem, que celebra os feitos do passado e justifica as ações do presente. A valorização da figura do bandeirante como herói descobridor do país daria ensejo à superposição de uma parte sobre o todo, ou seja, de São Paulo sobre o Brasil.
Os feitos paulistas ganharam realce na reflexão sobre a história do Brasil. Grande parte da riqueza nacional tinha origem no estado. Não só o sucesso das expedições bandeirantes, mas também o empreendedorismo dos cafeicultores paulistas possibilitaram que o desenvolvimento de São Paulo se diferenciasse da economia mineira e fluminense. A região tornou-se a mais avançada do país e sua imagem estava diretamente ligada a ideia de progresso nacional, pois a economia paulista se tornou o centro dinâmico da economia brasileira, sendo responsável por uma impulsão do crescimento econômico das outras regiões.
Assumiu-se o bandeirante como símbolo dos paulistas na revolução de 1932, sendo este um momento de encantamento cívico, organizado em torno da simbologia regional. Esse espírito de patriotismo paulista é chamado por Holien Bezerra (1988) de “mito da paulistanidade”20, cujas características são o apelo emocional aos bandeirantes e o discurso homogeneizador com ênfase na unidade e na harmonia da população do estado.
As características citadas por Bezerra podem ser identificadas na narrativa de Paulo Duarte (1947, p. 14) sobre o front: “Não via o espaço, via o tempo. Via diante a guerra vencedora. Via o paulista atravessando mais uma vez, na nova bandeira, as serras em que agora se batia. Via-o entrando pelo Brasil a dentro para, de novo, dar o Brasil ao Brasil”. Percebe-se nas palavras do autor a generalização em torno de “o paulista”, como se toda a população estivesse envolvida na guerra civil e como se o espírito bandeirante pudesse se conservar no tempo. Os cartazes do movimento com figuras de bandeirantes ilustraram a citação de Paulo Duarte, quando o autor falou em “Dar o Brasil ao Brasil”.
[...]
Fonte:
Sherloma Starlet Fonseca: “Memórias de um Constitucionalista: Paulo Duarte e a Guerra Civil de1932” . (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, da Faculdade de História, da Universidade Federal de Goiás, como requisito para a obtenção do Título de Mestre em História. Área de concentração: Culturas, fronteiras e identidades. Linha de Pesquisa: História, memória e imaginário social. Orientador: Prof. Dr. Noé Freire Sandes). Goiânia, 2009.
A pátria bandeirante: entre o passado e o presente
"Tratar da identidade constitucionalista é identificar um “ser paulista” que se refere não apenas ao paulista de nascimento, mas todos que congregariam de um “espírito paulista”. A guerra civil ficou na história como uma questão paulista e o isolamento a que o estado foi subjugado durante o conflito exacerbou ainda mais as percepções nesse sentido. Para que o movimento ganhasse expressividade e agregasse o maior número possível de militantes e simpatizantes, tornou-se estratégico o uso de propagandas que divulgavam a auto-imagem do grupo constitucionalista vinculada à exaltação e reafirmação da identidade deste “ser paulista”, entrecruzava-se, assim, as duas identidades. O velho bandeirante construtor da nacionalidade teria agora que defendê-la, empunhando a constituição como arma. Os historiadores, sobretudo da revista do Instituto Histórico Geográfico de São Paulo (IHGSP), como Afonso de Taunay e Alfredo Ellis Jr., atribuíram aos paulistas o papel de construtores da nacionalidade. Aos intelectuais e, sobretudo, à imprensa coube o papel de exaltar a superioridade desse povo diante do novo desafio, a luta pelo retorno da norma constitucional.
Segundo Peter Burke (2000), cada sociedade, assim como os indivíduos, seleciona os acontecimentos e valores a serem retidos na memória e depois determina também a maneira com que devem ser rememorados. Essa observação se aplica à experiência paulista, pois a construção da identidade do movimento de 1932 perpassou pela adaptação dos valores e da história paulista aos princípios constitucionalistas. Nesse sentido, os feitos e as personagens do passado são rememorados e outras vezes também ressignificados no trabalho de construção de uma imagem do Estado de São Paulo personificado como sujeito coletivo, civilizador e promotor do progresso nacional. Busca-se também promover a coesão de diversos grupos sociais e étnicos, resgatando a importância destes nos cenários das mudanças regionais, formando uma aparente homogeneidade firmada na identidade una do “ser paulista”.
Danilo Zioni Ferretti e Maria Helena Capelato (1999) afirmam que, desde o final do século XVIII, a elite paulista esforçava-se por formar a identidade de São Paulo como a vanguarda da nacionalidade. Segundo os autores, a partir de
Segundo este discurso, os "brasileiros" seriam caracterizados pela submissão e dependência frente ao governo, pela falta de iniciativa, indolência e preguiça. Já os paulistas seriam marcados pelo desenvolvido "espírito empreendedor", pela iniciativa, tenacidade, energia e independência perante o governo. Disso concluía-se que o paulista era uma "exceção" no conjunto do império e o rápido crescimento da província e sua participação no movimento republicano, devido única e exclusivamente ao espírito empreendedor de seus filhos, comprovaria tal fato. (FERRETI e CAPELATO, 1999, p. 5)
Ferreti e Capelato demonstraram que tais grupos paulistas buscavam representar a superioridade do estado no conjunto do Brasil, além de marcarem com clareza a excepcionalidade de São Paulo, aproximando-se do norte americano. O auge das discussões foi dos anos 1920 e início dos anos de 1930, quando a temática passou a ser discutida nos diversos veículos de comunicação. Nesse contexto, o levante de 1932 marcou mais um surto de paulistanismo.
Segundo Maria Helena Capelato (1989), o jornalista paulista Amadeu Amaral referiuse ao “imperialismo benéfico de São Paulo”, que justificava o papel de liderança que esse estado deveria assumir na grandiosa obra de transformação do Brasil em uma potência. A definição do Estado de São Paulo como a “locomotiva que puxa os vagões vazios” é ressaltada em vários estudos econômicos e sobre a dinâmica industrial.
Para continuar sendo a “locomotiva” do Brasil e, naquele momento, defender o país da ditadura varguista, os paulistas tinham consciência de que o estado necessitava de “trilhos” fortes. Durante os primeiros anos da década de 1930, os paulistas tentaram agregar os outros estados à campanha constitucionalista. Contudo, o apoio conseguido nessas regiões não foi oficial, restringindo-se a alguns líderes isolados em Minas, no Rio Grande do Sul e no Mato-Grosso. A falta de apoio, especificamente de Minas Gerais, ressentiu os paulistas, pois, até então, a integração entre os dois estados era estendida do campo econômico ao político. Minas e São Paulo eram os “dois irmãos” da política Café com Leite; foram aliados na Aliança Liberal, que incluiu o Partido Republicano Mineiro e o Partido Democrático. O estado de Minas Gerais era o vizinho com que os paulistas esperaram contar até o último instante em 1932. Contudo, o passado de integração ficou para trás, pois o momento colocava antigos aliados em lados contrários. Paulo Duarte (1947, p. 302) comenta com pesar a separação dos antigos companheiros de luta: “O mineiro, este era da família. Vizinho amável, um pouco agarrado, mas companheiro firme de todas as agruras. Entretanto, hoje nos mostrava as coisas diferentemente”.
A situação de isolamento exacerbou ainda mais o sentimento regionalismo que existia
Os paulistas viam nos dados econômicos e na compreensão de sua própria história o status que legitimava a sua liderança nacional e justificava o apoio ao movimento constitucionalista solicitado aos outros estados. Para reforçar ainda mais a própria representação, os paulistas foram envolvidos nos discursos nostálgicos de valorização das glórias do passado. A imagem do paulista vinculada ao empreendedorismo e à liberdade aparece na obra de Paulo Duarte relacionada à luta constitucionalista pela democracia, tendo como símbolo os bandeirantes e ex-escravos do Quilombo dos Palmares.
A imagem dos ancestrais bandeirantes é retomada numa visão romântica de heróis paulistas. Considerava-se que São Paulo gozava as honras do estado mais rico do país graças à tenacidade daqueles que o construíram, ou seja, dos desbravadores do território nacional que enfrentaram os perigos das matas e foram recompensados pela descoberta das riquezas.
A febre épica de valorização do bandeirante tinha finalidade comparada a de um mito de origem, que celebra os feitos do passado e justifica as ações do presente. A valorização da figura do bandeirante como herói descobridor do país daria ensejo à superposição de uma parte sobre o todo, ou seja, de São Paulo sobre o Brasil.
Os feitos paulistas ganharam realce na reflexão sobre a história do Brasil. Grande parte da riqueza nacional tinha origem no estado. Não só o sucesso das expedições bandeirantes, mas também o empreendedorismo dos cafeicultores paulistas possibilitaram que o desenvolvimento de São Paulo se diferenciasse da economia mineira e fluminense. A região tornou-se a mais avançada do país e sua imagem estava diretamente ligada a ideia de progresso nacional, pois a economia paulista se tornou o centro dinâmico da economia brasileira, sendo responsável por uma impulsão do crescimento econômico das outras regiões.
Assumiu-se o bandeirante como símbolo dos paulistas na revolução de 1932, sendo este um momento de encantamento cívico, organizado em torno da simbologia regional. Esse espírito de patriotismo paulista é chamado por Holien Bezerra (1988) de “mito da paulistanidade”20, cujas características são o apelo emocional aos bandeirantes e o discurso homogeneizador com ênfase na unidade e na harmonia da população do estado.
As características citadas por Bezerra podem ser identificadas na narrativa de Paulo Duarte (1947, p. 14) sobre o front: “Não via o espaço, via o tempo. Via diante a guerra vencedora. Via o paulista atravessando mais uma vez, na nova bandeira, as serras em que agora se batia. Via-o entrando pelo Brasil a dentro para, de novo, dar o Brasil ao Brasil”. Percebe-se nas palavras do autor a generalização em torno de “o paulista”, como se toda a população estivesse envolvida na guerra civil e como se o espírito bandeirante pudesse se conservar no tempo. Os cartazes do movimento com figuras de bandeirantes ilustraram a citação de Paulo Duarte, quando o autor falou em “Dar o Brasil ao Brasil”.
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Fonte:
Sherloma Starlet Fonseca: “Memórias de um Constitucionalista: Paulo Duarte e a Guerra Civil de
Estudantes empunhando a bandeira de São Paulo durante passeata
Waldemar Ferreira e Roberto Moreira falando pelo microfone da Rádio Cruzeiro do Sul, conclamando o povo a lutar pela constitucionalização do país e pela autonomia política de São Paulo
A multidão reunida no comício na Praça da Sé, no centro de São Paulo
Outra vista da multidão durante o comício de 1932, promovido pela Liga Paulista Pró-Constituinte
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Campanha Constitucionalista: uma guerra feita de papéis, palavras, símbolos e açõesEsta não é uma revolução política, é, antes, uma explosão humana; não é uma rebellião de partidos, é uma reacção de sentimentos, uma insurreição geral, unânime, irresistível, de um povo que se vira ludibriado até a degradação. - José Maria Whitaker. (Departamento da Campanha do Ouro)
Povo de São Paulo
Não vos deixeis illudir pelas artimanhas dos politiqueiros profissionaes, esses politiqueiros vulgares, que nas suas arremettidas para galgarem o poder não trepidam em usar o nome do Povo, como se fosse uma de suas camisas sujas. (Folha volante anônima que circulouem São Paulo )
”As correlações de forças malogradas nos limiares dos anos de 1930, cujo resultado mais evidente materializou-se no confronto armado de 1932, encontram no âmbito cultural e nas esferas do ressentimento, dos valores regionais e das rivalidades e manifestações hostis, vértices explicativos importantes para o desfecho dissonante que tiveram. Percorrendo todo o processo do relacionamento entre os paulistas e o Governo Provisório, as tentativas de apropriação do campo simbólico constituem, por conseguinte, objetos certamente não menos significativos que as violentas e acirradas disputas bélicas para problematizar o levante de 1932.
Manifesta-se clarividente que, em sintonia com os desentendimentos, rupturas e rearticulações partidárias, desenvolve-se uma guerra visceral entre os candidatos ao comando do país, feita inicialmente de papéis e palavras. Nela, antes mesmo da radicalização armada, traços culturais, rumores e anseios egocêntricos foram explorados com a finalidade primordial de arregimentar adeptos às idéias em pugna e demonstrar a imponência dos trunfos sociais que dispunham no cenário político nacional. O crepitar da sublevação, não obstante, veria o agravamento sistemático das disputas pelo domínio do âmbito espiritual, como um vetor estratégico da luta.
Os ecos desta batalha insofismável, que no anseio bélico perpassou os aguçados sentimentos e identidades regionais, deixaram marcas vigorosas na sociedade, algumas das quais ressoam candentemente nos debates acadêmicos hodiernos. Para Maria Helena Capelato, em livro de divulgação, os materiais produzidos pelos combatentes no nível discursivo são indispensáveis fontes de conhecimento, que, até então, permanecem ao aguardo do historiador: “os panfletos, os artigos publicados em revistas, os jornais da época constituem material importante para a compreensão do ‘levante paulista de32’ , que continua ainda à espera de uma interpretação crítica”.
A relevância do enfrentamento pelo campo dos símbolos e das sensibilidades para o estudo da resistência paulista é sugerida mesmo pelos intérpretes que refutam a expressividade da campanha proselitista na arregimentação do voluntariado. O fotógrafo e historiador Jeziel de Paula afirma que a representação discursiva criada pelo governo deGetúlio Vargas, após o término do conflito tornou-se vitoriosa e teria sido oficializada, inclusive, pela historiografia de esquerda. Pois, “é possível detectar, principalmente nos círculos acadêmicos dos anos 60 e 70, uma tendência em aproximar as versões explicativas do acontecimento ao discurso dos vencedores, propagado em pleno exercício do poder”.
Deste modo, neste capítulo, proponho-me a refletir sobre esta problemática, na medida em que as análises históricas produzidas no final dos anos de 1970 constituem o que podemos caracterizar como o “campo clássico” das pesquisas sobre 1932, e, a despeito da eventual aproximação historiográfica com o discurso dos vencedores, a versão dos vencidos é que se consolidou pujantemente na memória coletiva dos paulistas, como sinônimo da grandeza do estado.
Para tanto, buscando reavaliar e apreender a dinâmica do processo histórico que permitiu, a partir da fecunda imbricação entre os interesses políticos e a exploração das dimensões culturais da sociedade, a eclosão do confronto armado, retoma-se o itinerário percorrido por essas emulações discursivas e partidárias. Inicialmente, cumpre esmiuçar as complexas relações entre a sociedade paulista e o Governo Provisório que redundaram em ruptura no princípio de 1932, pensando-as como elemento imprescindível para a compreensão do levante, pois este processo foi reducionalmente entendido pela historiografia como de reação do Partido Democrático de São Paulo contra o “tenentismo” e suas tendências centralizadoras. Em seguida, evidenciados os descontentamentos da sociedade paulista e sua expressividade no cenário político, nem sempre considerados pela produção historiográfica, a análise recairá sobre o momento em que a retórica perpetrada pela burguesia se avoluma, fomentando e canalizando a ação das massas nas ruas de São Paulo. Por fim, investiga-se a conformação do debate público travado nos tempos de confronto, com a função de vencer o adversário no plano discursivo e abrir caminho para a exploração massiva do imaginário social em meio à tentativa desesperada de conquistar corações e mentes, em âmbito nacional, para a batalha.”
Fonte:João Paulo Rodrigues: “O Levante “Constitucionalista” de 1932 e a Força da Tradição: Do confronto bélico à batalha pela memória – 1932/1934”. (Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade). Orientadora: Profa. Dra. Zélia Lopes da Silva). Assis, 2009.
Povo de São Paulo
Não vos deixeis illudir pelas artimanhas dos politiqueiros profissionaes, esses politiqueiros vulgares, que nas suas arremettidas para galgarem o poder não trepidam em usar o nome do Povo, como se fosse uma de suas camisas sujas. (Folha volante anônima que circulou
”As correlações de forças malogradas nos limiares dos anos de 1930, cujo resultado mais evidente materializou-se no confronto armado de 1932, encontram no âmbito cultural e nas esferas do ressentimento, dos valores regionais e das rivalidades e manifestações hostis, vértices explicativos importantes para o desfecho dissonante que tiveram. Percorrendo todo o processo do relacionamento entre os paulistas e o Governo Provisório, as tentativas de apropriação do campo simbólico constituem, por conseguinte, objetos certamente não menos significativos que as violentas e acirradas disputas bélicas para problematizar o levante de 1932.
Manifesta-se clarividente que, em sintonia com os desentendimentos, rupturas e rearticulações partidárias, desenvolve-se uma guerra visceral entre os candidatos ao comando do país, feita inicialmente de papéis e palavras. Nela, antes mesmo da radicalização armada, traços culturais, rumores e anseios egocêntricos foram explorados com a finalidade primordial de arregimentar adeptos às idéias em pugna e demonstrar a imponência dos trunfos sociais que dispunham no cenário político nacional. O crepitar da sublevação, não obstante, veria o agravamento sistemático das disputas pelo domínio do âmbito espiritual, como um vetor estratégico da luta.
Os ecos desta batalha insofismável, que no anseio bélico perpassou os aguçados sentimentos e identidades regionais, deixaram marcas vigorosas na sociedade, algumas das quais ressoam candentemente nos debates acadêmicos hodiernos. Para Maria Helena Capelato, em livro de divulgação, os materiais produzidos pelos combatentes no nível discursivo são indispensáveis fontes de conhecimento, que, até então, permanecem ao aguardo do historiador: “os panfletos, os artigos publicados em revistas, os jornais da época constituem material importante para a compreensão do ‘levante paulista de
A relevância do enfrentamento pelo campo dos símbolos e das sensibilidades para o estudo da resistência paulista é sugerida mesmo pelos intérpretes que refutam a expressividade da campanha proselitista na arregimentação do voluntariado. O fotógrafo e historiador Jeziel de Paula afirma que a representação discursiva criada pelo governo deGetúlio Vargas, após o término do conflito tornou-se vitoriosa e teria sido oficializada, inclusive, pela historiografia de esquerda. Pois, “é possível detectar, principalmente nos círculos acadêmicos dos anos 60 e 70, uma tendência em aproximar as versões explicativas do acontecimento ao discurso dos vencedores, propagado em pleno exercício do poder”.
Deste modo, neste capítulo, proponho-me a refletir sobre esta problemática, na medida em que as análises históricas produzidas no final dos anos de 1970 constituem o que podemos caracterizar como o “campo clássico” das pesquisas sobre 1932, e, a despeito da eventual aproximação historiográfica com o discurso dos vencedores, a versão dos vencidos é que se consolidou pujantemente na memória coletiva dos paulistas, como sinônimo da grandeza do estado.
Para tanto, buscando reavaliar e apreender a dinâmica do processo histórico que permitiu, a partir da fecunda imbricação entre os interesses políticos e a exploração das dimensões culturais da sociedade, a eclosão do confronto armado, retoma-se o itinerário percorrido por essas emulações discursivas e partidárias. Inicialmente, cumpre esmiuçar as complexas relações entre a sociedade paulista e o Governo Provisório que redundaram em ruptura no princípio de 1932, pensando-as como elemento imprescindível para a compreensão do levante, pois este processo foi reducionalmente entendido pela historiografia como de reação do Partido Democrático de São Paulo contra o “tenentismo” e suas tendências centralizadoras. Em seguida, evidenciados os descontentamentos da sociedade paulista e sua expressividade no cenário político, nem sempre considerados pela produção historiográfica, a análise recairá sobre o momento em que a retórica perpetrada pela burguesia se avoluma, fomentando e canalizando a ação das massas nas ruas de São Paulo. Por fim, investiga-se a conformação do debate público travado nos tempos de confronto, com a função de vencer o adversário no plano discursivo e abrir caminho para a exploração massiva do imaginário social em meio à tentativa desesperada de conquistar corações e mentes, em âmbito nacional, para a batalha.”
Fonte:João Paulo Rodrigues: “O Levante “Constitucionalista” de 1932 e a Força da Tradição: Do confronto bélico à batalha pela memória – 1932/1934”. (Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade). Orientadora: Profa. Dra. Zélia Lopes da Silva). Assis, 2009.
Multidão que compareceu ao quartel da Força Pública
Pessoas envolvidas no movimento revolucionário
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Fonte das imagens:
Revista "A Cigarra", julho de 1932, disponível digitalmente no site do Arquivo Público do Estado de São Paulo
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